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15 março, 2010

Reticências 9

Por que eu quero aquele filho da puta morto? Por que não conseguiram enfiar uma bala no peito dele, conforme eu mandei? Por que ainda fico pensando nessa história, como se tivesse acontecido na noite passada?

Lembro claramente daqueles poucos notáveis, que emprestaram seus conhecimentos para concretizar a minha ousadia. Prontos para tirá-la dos braços de Morfeu e entregá-la às mãos da Ciência.

Meu delírio era que cada pessoa tivesse dispositivos dentro de si que pudessem gerar o desejo de ser mais inteligente, saudável e feliz. Uma “excentricidade” que fatalmente resultaria em gastos exorbitantes... Foda-se! Eu paguei pra ver!

Para isso, reuni as maiores capacidades em neurologia e nanotecnologia. Para financiar os jalecos, eu era o terno que queria vender a imagem da “pessoa perfeita”, a base de minúsculos estimuladores eletrônicos infiltrados nas atividades cerebrais.

Chamamos o projeto de “Joe”. Qual a razão para este nome? Talvez pela sacanagem de perguntar “como vai o Joe?” em frente aos outros, sem que desconfiassem da revolução idealizada por nós.

Após anos de frustrações, os testes com símios e roedores começaram a nos entusiasmar, graças a uma criação denominada “chip-terminal”. Até hoje, não descobri como isso funciona, e agora até tenho raiva de quem sabe!

O trabalho era mantido em sigilo, ainda mais devido ao passo seguinte: pegar um grupo de 25 pessoas, que não fariam falta alguma ao mundo. Eram os nossos “Joes”, tentativas para se alcançar a evolução mais rapidamente. Mostrar que Deus é quem ousa sê-lo.

Sem qualquer sinal de laço afetivo e sem qualquer chance de prosperar na vida, as cobaias serviriam adequadamente aos nossos propósitos. Não tinham nada a perder com o que lhe oferecemos: tornar-se um molde para bilhões.

Surpreendemo-nos quando, em questão de meses, elas já apresentavam consideráveis melhorias. Projetávamos com euforia civilizações de porte hercúleo, destreza felina e mente einsteiniana.

Até que, em determinado momento, os pesquisadores perceberam algo que nem mesmo eles, ou quaisquer outros gênios, podiam alterar: a necessidade da natureza humana de também ter os seus momentos de estupidez e desleixo.

Travava-se uma batalha interna. Os olhos brilhavam por aprendizado, mas logo se perdiam por ausência de concentração. As pernas não respondiam aos impulsos iniciais de se exercitar. Abria-se um sorriso para depois aprofundar-se em depressão.

O projeto foi cancelado, e todas as cobaias se livraram dos chips, sem seqüelas imediatas aparentes. Apenas uma foi mantida, um homem que continuava desenvolvendo suas aptidões, sem transparecer reações negativas.

A exceção mostrou-se confiável, então percebi que suas habilidades serviriam muito bem à Agência, o que se confirmou a princípio. Pois me deixei levar pelo orgulho dele ter sido minha “cria”, e dei brecha para a merda que ele estava aprontando...

11 fevereiro, 2010

Reticências 8

Caminhar pela rua ajudava a esquecer os problemas, ou pelo menos assim eu pensava. Sem emprego, sem mulher e agora, oficialmente, sem casa. A senhoria não ficou muito feliz de saber que eu ficaria devendo mais um mês de aluguel. E, sabe o que é pior? Compreender isso tudo e saber que todos estiveram certos quando agiram (teoricamente) contra mim. Eu já tinha vendido tudo o que poderia ser vendido... Só me restavam algumas roupas, uma mala, alguns trocados, um colchão (que ficou no apartamento... ele não pagava nem um quinto do que eu devo para a Sra. Miller) e o velho Colt de meu pai.
Pelo menos essa parte da minha vida eu conseguia conservar. Meu velho pai... Sinto saudades. Essa arma era de meu avô, que tinha recebido do pai dele. Foi passada de geração em geração, como uma espécie de amuleto. Meu bisavô, pelo que me lembro do pai falar, era um delegado e essa arma era a “Mantenedora da paz e da ordem”, como estava gravado em sua coronha.
Bem, a arma tinha uma história... E garanto que mais feliz que a minha...
O título da minha vida poderia ser “O Panaca”... Pena que já é aquele filme com aquele ator que não consigo lembrar, mas que tem cabelos grisalhos e não é o Leslie Nielsen. Enfim, eu sou um crédulo. Nem sei como consegui chegar tão longe.Vindo do interior e com boas notas eu consegui uma bolsa de estudos na universidade, não só por causa das notas, mas porque era um bom jogador de Rúgbi. O treinador Coach disse que eu tinha futuro (nome engraçado o dele) e que poderia me tornar um profissional. Sendo assim, e ainda gostando de matemática, fui para o curso de Economia. Na universidade a vida fluiu. Eu nunca fui muito popular, os caras de outros esportes eram mais paparicados, afinal eles não estava com a cara inchada e roxa depois dos jogos. E eu sempre fui tímido, preferindo ficar na minha...
Foi lá que eu conheci a Rose, que veio a se tornar minha namorada. Ela tinha algo que faltava em mim... Depois vim a descobrir que eram os culhões. Ela fazia o que bem queria comigo. Eu nunca entendi bem porque eu deixava.... Eu simplesmente o fazia. No último semestre, pouco antes da formatura, eu me machuquei, e feio.
Tudo já estava esquematizado. Eu me tornaria profissional na equipe daqui mesmo e poderia fazer carreira. Mas, com um dos ligamentos do joelho direito destruídos na final do campeonato universitário, minha carreira chegava ao fim antes mesmo de começar. Só me restava a Economia, e assim foi. Fui trabalhar num banco, no setor de empréstimos. Nesse ponto minha credulidade começou a destruir minha vida...
O que eu fiz de errado? Ter pena das pessoas... Conceder empréstimos para quem não podia pagar e, seis meses depois, voilá, demissão por justa causa.... Rose? Essa deu no pé quando eu saí da faculdade... Nós morávamos juntos (eu a sustentava) e na primeira oportunidade ela partiu, dizendo que ia pra Paris, estudar. Hahaha... Ela tinha muitas dores de cabeça...
Pensar na minha vida na me fazia nada bem, mas era o que me restava. Era minha form...
Um tropeço e um encontrão num homem de meia idade, bombado:
- Desculpe senhor, eu estava distraído...
- Some da minha frente, seu almofadinha!
E um empurrão... A vida ensinou David Strauss a não revidar quando não era necessário. Acelerou um pouco o passo, sentindo um leve desconforto no joelho doente. Olhou para o céu, tentando encontrar a sol, de modo que esse o cegasse por alguns instantes. Ao invés disso, abaixo do ambiente nublado, entre os edifícios, viu o que pareciam ser duas balas cruzando por sobre a rua.
“Que estranho... Mas não é comigo.” – pensou. O desconforto tornou-se um dor, não das piores, mas uma daquelas que só passavam com alguns momentos de descanso. Viu um beco, desses que ficam entre os prédios e foi para lá, sentando em um caixote de madeira, massageando levemente o joelho. Segundos depois ouviu um barulho metálico sobre si e ao olhar para cima pôde visualizar um sujeito que caía pela lateral do edifício à direita. Sua última reação foi fechar os olhos...

05 fevereiro, 2010

RETICÊNCIAS 7

Um sorriso irresistível nasce do canto da minha boca quando a bala resvalada penetra no terrível papel de parede verde-musgo. É claro que eu poderia ter sido mais competente, mas eu gosto desse jogo de gato e rato que se apresenta à minha frente. E além do mais, esse rato é especial.

Súbito ao tiro, silêncio. Deve estar forçando aquela porra de supercérebro em algum plano de fuga genial. Os segundos são intermináveis, mas aproveito cada momento da sua aflição para recarregar as minhas energias depois da monótona noite de verão. Já era hora de movimentar as coisas.

O imagino assustado e permito-me abrir um pouco mais meus lábios como uma grande faca curvada. Gosto de brincar com meus alvos, sentir o aroma do medo e decifra-lo nos gestos descuidados e na mente paranóica de suas vítimas. Por mais extraordinário que um indivíduo possa ser, quando o terror absoluto lhe sufoca a razão, a guarda baixa. E é nessa hora, tal qual um toureiro, é que eu desfiro meu golpe fatal leve o tempo que levar.

Há certamente uns que reprovam meus métodos, os rotulando como caóticos, desleixados ou demorados em demasia. Outros ainda, suspeitam da extrema negligência da Agência com os mesmos.

Pobres idiotas. Onde esses merdas vêem caos, eu vejo ordem. A minha ordem. Sabe aquele livro de regrinhas que todo recruta é obrigado a decorar antes de largar a fralda? Pois é, eu não só o rasguei em pedaços como embaralhei todos fora de posição depois. A chefia sabe do meu resultado e me trata como um mal necessário, habilmente relevando meu modus operandi à vista de meus “companheiros”. Eu, pessoalmente, cago e ando pra essa porra toda. Fazer parte só é conveniente para satisfazer as minhas próprias necessidades. Nem mais, nem menos.

Ainda com o olho na mira, alcanço a xícara amarela em cima da mesa e bebo um pouco do café. O aroma forte invade o meu cérebro e vislumbro movimento na escada de incêndio. Desaponto-me por um instante e delicio-me no outro. Em tempos passados, esse débil plano de fuga seria indigno da sua condição extraordinária. Hoje, é a prova inconteste de que meu plano caminhava perfeitamente.

Reposiciono o rifle nacional e prendo a respiração enquanto planejo uma dose a mais de desespero em sua mente fragilizada. De repente, como por improviso, descuidados estampidos partem na direção do alvo, alvejando o concreto segundos antes e depois do seu salto para um terreno baldio anexo. Ligeiro, solto a arma e pulo da cadeira de balanço na direção das cortinas forçando meus olhos contra o clarão matinal - dois andares acima, vejo um cano esfumaçado que num instante desaparece.

Como um raio, volto para dentro do cômodo central e derrubo o café ainda quente na mesa. Abro a gaveta do criado-mudo e vislumbro a Glock prateada colocando-a perigosamente na cintura. O jogo era meu para ser jogado, porra!

Ao atravessar a porta do apartamento em direção às escadas, meus dentes já rangem, pronunciando ainda mais o meu já avantajado maxilar como sempre acontece quando fico nervoso. E nervoso, meu amigo, não era nada bom.

21 janeiro, 2010

Reticências 6

Como eu gostaria de correr com as minhas pernas de ontem!

Pisei ofegante o topo do prédio. Nove andares, até que não é tão alto. Ou será que deveria considerar minha trôpega condição?

Os riscos de chumbo no céu azul. Os riscos que corro se não saltar. Correr, saltar, eu não sou mais um atleta olímpico.

Meus dias de herói são páginas de jornal, meus nomes são passado. Tanto a alcunha de batalha, como o que constou na certidão, hoje trancada em um arquivo de pó.

O salto de um herói. A queda de um homem. A história de uma vida.

Sorte que mantenho o equilíbrio no momento de aterrissar. Azar que os disparos continuam, vindos agora de outro ponto.

Meu plano de fuga havia sido traçado nos míseros segundos que vi a área de cima. Terrenos de mato descuidado me escondem até alcançar um local que julgo seguro.

O sol inimigo pode revelar minha posição, e o vento confronta meu corpo, quase que completamente alterado por experiências. Algumas bem, outras mal sucedidas.

Porra, só agora me dei conta: esqueci as malas! Deixei sobre a cama! Tudo o que eu tinha! Resta apenas a roupa do corpo!

Um veloz processador na cabeça, que permite uma imperdoável falha emocional.

Como eu gostaria de poder pensar com o meu cérebro de ontem!

09 janeiro, 2010

RETICÊNCIAS 5

Não poderia ser mais óbvio. O telefone da lavanderia, onde uma vez por semana deixava sua roupa. A sensação de paranóia tomava conta dele. Tinha até esquecido como era tal sentimento. O ferimento encharcava a toalha, provavelmente mais grave do que parecia. Desenrolou o dedo e pôde verificar o sangue vertendo. Pegou uma toalha de prato, sobre a pia e enquanto estancava o sangramento sua espinha gelou. O aparelho celular tocava novamente. Num misto de medo e ódio, correu até a sala e atendeu, ouvindo a mesma voz anterior:
- Se fosse você cuidaria deste ferimento. Você não pode morrer. Sua vida pertence a nós.
Num desespero que poderia ser a definição semântica do próprio termo, virou-se e para a janela mais próxima. Serrando os olhos, visualizou com muita dificuldade, na janela defronte a sua, um sujeito na penumbra, apontando um rifle com o que parecia uma mira. Olhou para seu peito. Um ponto vermelho desenhava sinistramente um lemniscate em seu peito.
“Deus, é o fim...” - pensou de início. O lazer cessou sua brincadeira infantil e pôs-se a subir, tomando seu pescoço e ofuscando seu olho esquerdo.
“NÃO!” – pensou novamente, enquanto seu cérebro iniciava os cálculos, algo que não acontecia havia tempos.
Trajetória da bala, velocidade... Deduziu se tratar de um rifle nacional, pois, fanáticos como eram, não se dariam ao desfrute de utilizar uma arma de outro Estado. Desvio ao passar pelo vidro, diferença da mira para o cano. Milésimos de segundo se tornavam minutos em sua massa encefálica.
Esquivou-se para sua a esquerda inferior, inclinando levemente a cabeça para a direita, tornando sua caixa craniana um objeto passível de ricochetear balas, essa era sua aposta. Se fosse uma bala com ponta de urânio, seu plano falharia. Felizmente, não era.
A bala perfurante passou pela sua cabeça, cavando uma vala milimétrica e levando consigo uma gota de sangue. Ouviu-se um grito feminino vindo do apartamento ao lado. Mais uma vítima de bala perdida. Pobre Senhora Parker... Se não tivesse dito que eu estava em casa, tudo isso poderia ser evitado.
Rastejou pela sala, agradecendo a si mesmo pelo desleixo de deixar roupas previamente usadas no sofá. Com o cuidado de não ficar à mostra, vestiu-se num piscar de olhos, abriu a porta e correu.
O cérebro calculava. Escadas, elevador, térreo, rua... Muito óbvio. Escadas, telhado, escada de incêndio. Probabilidade baixa de erro. O agradecimento anterior transformou-se num dito de maldição, pelo fato de não conhecer o terreno.
Três passos de sua corrida haviam sido dados e o telhado era sua melhor opção.

21 dezembro, 2009

RETICÊNCIAS 4

Não sabe quanto tempo havia passado desde a última piscada. Só se moveu quando dos seus olhos surgiu a ardência provocada por uma fria e solitária gota de suor que pela testa percorreu lentamente suas rugas num grande canyon ressecado.

Abruptamente levanta deixando o celular escorregar pelo seu colo em direção ao carpete. Cruza a sala e entra no pequeno quarto alcançando uma surrada mala de couro bege em cima do armário atirando-a na cama de casal.

Enquanto roupas eram urgentemente arremessadas para a bagagem, pensa como ele realmente tinha acreditado que dessa vez seria diferente. Considerava um golpe de sorte a providência de achar esse apartamento de temporada ao invés de ficar em mais um hotel como nos últimos meses.

Aqui teria tempo para pensar e alcançar seu objetivo com relativa calma. Tinha a convicção que seria diferente, até mesmo porque a ampulheta do tempo se esvaia. Teria sido em vão? Esse pesadelo nunca vai ter fim?

Apressadamente fecha a mala e machuca o dedo na fivela, xinga alto enquanto inutilmente abana a mão no caminho para o banheiro. Abre a torneira e molha de forma desajeitada o corte alagando todo o piso branco. No caminho para a toalha, se encara no espelho como há tempos não se atrevia.

Não tinha percebido o quanto envelhecera nesse meio tempo. Os olhos fundos, as rugas e a barba por fazer formavam o aspecto de um homem décadas mais velho. Sempre foi conhecido por ter um rosto de que era fácil gostar, agradável e enrubescido. Rosto esse perdido em épocas mais simples. Hoje não é mais do que um uma caricatura de si mesmo: se escondendo, fugindo na vã esperança de resolver o cada vez mais irresoluto.

O corte dói enquanto a água fria entra pela carne rasgada. A pia já tingida de vermelho parece pulsar no ritmo de sua enxaqueca. Fecha os olhos com força - como pôde deixar essa porra acabar com sua vida? Dilacerar sua dignidade? Extirpar a vontade de sua alma, renegar seu direito por uma vida normal? Foda-se, não mais!

Enrola de qualquer jeito a toalha na mão machucada e corre para alcançar o diminuto telefone ainda semi-encoberto pelo plástico bolha. Olha nas chamadas recebidas e se espanta em se deparar com um 0800 conhecido. Onde é que viu esse número antes? De soslaio, fita a geladeira branca e a alcança se apressando em passar seus dedos esqueléticos entre os inúmeros imãs derrubando alguns no processo.

De repente para. Dá um passo pra trás lentamente como se fosse planejado, meticuloso. O sangue parece congelar mesmo com o coração como locomotiva no seu peito:

Ele estava certo.

16 dezembro, 2009

RETICÊNCIAS 3

A embriaguez escorreu pela pele amassada. O raciocínio tentou inútil ignorar o pedido de urgência. O corpo era a própria imagem da fragilidade.

Pedi para deixar a encomenda em cima da poeira do capacho. O sevidor, leal a sua função, exigiu que eu assinasse a papelada.

Em segundos, abri a porta, percebi que ainda existia um mundo lá fora, e voltei ao regime solitário - uma combinação tediosa de álcool, comida congelada e TV por assinatura.

Nem me despedi do rapaz. Olhos embaçados tentavam focalizar o pacote. Não era tão pesado. A consciência, essa sim, pressionava oito toneladas e meia sobre as costas.

A navalha abriu uma caixa de Pandora.

Impossível! Fiz de tudo para eliminar quaisquer vestígios! Como pude falhar?

O pânico se acentuou com um toque de telefone celular, algo que eu não tinha. Mesmo envolvido em plástico-bolha, ainda assim escapava um barulho irritante.

- Você acabou com a minha vida! Agora, é a minha vez de acabar com a tua!

Aquela voz foi o pior café-da-manhã que já experimentei. Não conseguia sequer respirar.

- Se eu fosse você, sumia de novo! Se for capaz...

Sempre havia me portado como homem correto. Até o instante que cometi um erro, considerado imperdoável por aqueles que eu me joguei contra o fogo para protegê-los.

Agora, minha vida vai se transformar em um inferno novamente.

15 dezembro, 2009

RETICÊNCIAS 2

Afastar-se um passo foi um reflexo, uma tentativa de vã sobrevivência, mesmo sem ameaça. O recém retorno da dimensão de Orfeu ainda o deixava confuso. Ou seria outra dimensão?
Como Adão no Paraíso Perdido de Milton, busca explicação para tais fatos inexplicáveis. Ou seria apenas destempero mental?
A figura do entregador o atormentava, tal qual a serpente, depois chamada Satã. A dúvida acometia cada vaso sangüíneo de seu corpo e cada órgão, como se transportada por hemácias insurgentes.
Fúria e medo se faziam presentes, enquanto seu cérebro produzia energia elétrica suficiente para iluminar uma lâmpada – “Como isso pode estar acontecendo?” – “Será um engano... Tenho certeza! Ninguém sabe onde estou...” – “Mas se alguém souber, estou condenado!”.
Teus pensamentos, agora mais amalgamados que antes, o levaram por caminhos não antes percorridos. Ou seriam lembranças anteriores? Ou pior, posteriores? Levou a mão à fronte, tentando conter uma pontada de enxaqueca que se anunciava, como o tema inesquecível de Tubarão.

Um quarto toque de campainha é ouvido, seguido por um conjunto de toques estridentes da aldraba pendente em sua porta e de uma solicitação recheada de sotaque castelhano:
- Señor, sei que está aí. Sua vizinha de porta avisou. Por ordem da empresa, devo entregar a encomenda em mãos. Aqui diz: Urgente e Frágil!

14 dezembro, 2009

RETICÊNCIAS

O despertador finalmente para depois de intermináveis minutos. Já está acordado há tempos. Aliás, nem dormiu. Como se conseguisse logo na primeira noite. É sempre assim e ele se culpa por ainda não ter se acostumado.

Levanta de forma desajeitada da confortável poltrona carmim. Mil braços parecem puxá-lo de volta. Tropeça no copo de Jack Daniels e derrama o líquido amarronzado vagarosamente absorvido pelo carpete mofado. Faz um xingamento mental e se aproxima cambaleante da cortina. A perna ainda dói.

Os dedos deslizam pelo grosso tecido aveludado e o puxam para o lado devagar. A luz não tarda a entrar, ferindo olhos cansados acostumados com a escuridão. Como por reflexo, leva a outra mão à vista e sente a sua pele aquecer. Abre mais um pouco. Faz um belo dia de verão e a cidade se apresenta numa orgia de sentidos, muito diferente da letargia da noite anterior. Ele gosta de pensar nelas como organismos vivos nem sempre necessariamente saudáveis. Esta, por exemplo, está em estado terminal.

Percebe o cheiro, olha as ruas e as pessoas. Seus olhos treinados vêem por detrás das máscaras e do visual “comercial de margarina” do parque ao lado. Pensa como as pessoas são voluntariamente estúpidas e ignorantes. É difícil viver com a realidade. Mais fácil é se isolar em seu pequeno mundo esquizofrênico particular. Ele sabe disso por que essa já foi também sua vida, mas há tempos não é mais. E nunca mais o será.

Respira fundo e flexiona os braços para trás espreguiçando-os sem tirar os olhos da metrópole pulsante à sua frente. Suspira. Impressionante: só quando você se encontra perto do seu objetivo é que se percebe o quanto ele está distante.

Flexiona os ombros pra frente encosta a cabeça no vidro aquecido. Fecha os olhos. Uma dormência agradável toma conta do seu corpo. Nada mais parece urgente. Nenhuma grande ambição ou objetivo. Ele precisa descansar.

De repente barulho. A consciência violentamente o traz de volta. Os olhos doem, os pensamentos confusos e a cabeça ainda contra o vidro. Mais uma vez. Agora desperto se coloca ereto, os ombros ainda cismando em se curvar pra frente. Procura a origem do barulho e demora em entender que ele vem da sua campainha. Como poderia saber¿

Desloca-se dolorosamente para a porta, os músculos travados e a perna dura como pedra. A distância é pequena, mas dá tempo de um terceiro toque, agora mais insistente. Olha no olho mágico e vê o uniforme impecável de um mexicano baixinho segurando um pequeno pacote da FEDEX contra o corredor démodé. Mesmo através da imagem turva não há como não reconhecer o seu nome na etiqueta do pacote. O coração dispara: ninguém sabe que ele está aqui.