09 agosto, 2007

Breve apanhado da história dos quadrinhos na Europa e nos EUA (até anos 80). - 4ª parte

O PERÍODO DE RENOVAÇÃO DAS HQ

Após os problemas encontrados na década de 40, a HQ ame­ricana irá esbarrar com um novo obstáculo ao seu desenvolvimento: o ataque feito contra as HQ’s por algumas pessoas de prestígio - psiquiatras, educadores, psicólogos e outros. Esses ataques se acentuaram nos anos 50.
A HQ foi acusada de representar para os jovens uma perda de tempo e de atenção, de desenvolver a preguiça mental, de não ter nenhuma sutileza, de tornar as coisas demasiadamente fáceis, de falta de estilo e de moral, de humorismo imbecil ou de reduzir as maravilhas da linguagem a grosseiros monossílabos. Com o aumento da delinqüência juvenil após a Segunda Grande Guerra, esses ataques se tornaram mais violentos e as acusações de psicólogos e pedagogos culminaram com a publicação da obra do psiquiatra Wertham (1954), The Seduction of the Innocent (A Sedução dos Inocentes).
Nesse estudo, com exemplos de algumas HQ’s (apenas as más), Wertham aponta a HQ, numa generalização abusiva, como "a fonte de todos os problemas americanos". 17 Vários estudiosos', todavia, analisaram o problema de forma mais racional e refu­taram argumentos como o de Wertham, mostrando que, na rea­lidade, "as HQ’s não exerciam sobre as crianças uma influência mais nociva do que aquela dos contos de fadas ou das histórias de mocinho e bandido".
Apesar das sucessivas defesas das HQ’s, os sindicatos norte­-americanos submeteram os desenhistas a uma rigorosa censura. Isto acentuou a crise pela qual passavam as HQ’s, que já vinham sofrendo com a concorrência da TV americana. A essa época, atacantes da HQ prenunciavam sua queda e até o seu desapa­recimento, prognóstico totalmente errado, pois não levou em conta a enorme vitalidade e o dinamismo conquistado pelos comics. Assim é que as HQ americanas continuaram no seu de­senvolvimento e difusão pelo mundo.

- 1949 - Walt Kelly apresenta em tiras diárias seu Pogo, surgido ante­riormente (1943) numa revista de quadrinhos. São fábulas que se servem de animais para instruir os homens. Vários são os persona­gens apresentados: um urso irreverente, Barnstable; uma raposa pérfida, Seminole Sam; um mocho cientista, pseudo-intelectual e charlatão, o Dr. Howland; um cão de caça que perdeu o faro, Beauregard; um porco-espinho, Porky; uma vamp gambá, Miss Mam'zelle Hepzibah, e os dois personagens principais: Albert, um jacaré de personalidade marcante, e Pogo, pequeno sarigüê racio­nalista e humanista que contrapõe seu pensamento rigoroso ao ro­mantismo e lirismo de Albert. Todos esses personagens habitam o pantanal de Okefenokee, na Geórgia. Couperie (1970) assim se refere a Walt Kelly: "mais um filósofo do que um artista, com suas HQ aborda as grandes questões morais, sociais e políticas de sua época. Isso lhe valeu numerosos inimigos, inclusive o Senador MacCarthy, que foi por ele violentamente atacado na figura de um chacal, mas também granjeou-lhe o respeito e a admiração dos intelectuais, con­tribuindo assim para a reabilitação das HQ" A linha intelectualista criada por Kelly não tardou a ser seguida por vários outros desenhis­tas e argumentistas. Estava lançada a HQ com uma série de inten­ções, desígnios, preconcepções, alusões políticas, filosóficas e meta­-físicas.
- Aparece “Big Ben Bolt”, história de um boxeador, escrita por Elliott Caplin (irmão de Al Capp) e desenhada por John Cullen Murphy.
- 1950 - Surge Charles Schulz, Que se tornará imortal com os “Peanuts” (Minduim, no Brasil). 900 jornais nos EUA e 100 no estrangeiro pu­blicam suas aventuras, segundo os estudiosos das HQ. Schulz inicia uma linha de caráter psicológico e metafísico para os seus persona­gens. Mostra crianças Que raciocinam e agem como adultos, em situações "em que a comédia é apenas um véu sobre a tristeza latente, a crueldade Que se esconde sob o riso, dando aos Peanuts um caráter doce-amargo e uma sutil ambigüidade às vezes descon­certante" (Couperie, 1970). Seus principais personagens são Charlie Brown, lider descrente da natureza humana; Lucy van Pelt, menina cínica, cujo irmão Linus, intelectual precoce e frágil, vive preocupado com um cobertor Que sempre leva consigo; Schroeder, cujo maior prazer é tocar Beethoven em seu piano de brinquedo; Pig-Pen, o sujinho, e vários outros personagens. Merece citação especial o caso de Snoopy (Xereta, no Brasil), um cão filósofo Que, em sua casa, tortura-se com considerações metafísicas. Os Peanuts, como os ho­mens, têm fracassos, fazem perguntas Que não sabem responder, mas a vida continua.

Charles Schulz é um dos criadores de HQ mais comentados nos EUA por psicólogos que analisam as neuroses e fracassos de seus personagens. Schulz é citado até por teólogos, em obras como a de Robert Short, O Evangelho Segundo os Peanuts, que estabelece correspondências entre essas aventuras e os textos da Escritura (Marny, 1970). Os traços de Schulz são simples, usando pouco para expressar qualquer alteração psicológica de seus personagens, mas fazendo-o com tal propriedade que tem sido chamado nos EUA "O Freud dos Comics".
Com Kelly e, logo a seguir com Schulz, renasce com grande vigor a HQ americana com características intelectuais. As histó­rias humorísticas e de aventuras, no entanto, continuam a ser produzidas, paralelamente às de caráter intelectual.

- 1950 - Mort Walker lança “Beetle Bailey” (Recruta Zero), um soldado desajeitado, e seu companheiro Killer, o feroz sargento Sarge e os oficiais superiores, todos satirizados com a vivacidade e competência de seu criador.
- É lançada nos EUA a E. C. Horror Comic, com histórias de vampiros e monstros diversos.
- 1951 - Hank Ketcham mostra com “Dennis, the Menace” (Pimentinha) a vitalidade da história de garotos com as aventuras de um menino despenteado e muito vivo, que, com sua falsa inocência, conquista o conformismo de suas vítimas adultas inábeis e impotentes.
- Na Argentina, José Luís Salinas cria “Cisco Kid”, um cowboy.
- 1952 - Harvey Kurtzmann lança nos EUA a revista MAD, que satiriza personagens das HQ, modificando o estilo de humor nos EUA e no mundo todo.
- 1953 .- Stan Drake cria “The Heart of Juliet Jones” (O Coração de Julieta), com as aventuras romanescas de Julieta e de sua Irmã Eva.
- 1954 - Na Inglaterra, Sidney Jordan cria “Jeff Hawke”, série de ficção científica.
- 1956 - Jules Feiffer inicia a primeira série de anti-heróis da HQ, com a história intitulada Feiffer. O universo de Feiffer é pessimista e depressivo. Nele encontramos Bernard Mergendeiler, um fracassado, devorado por tiques e complexos, além de um grande número de jovens sem destino e mulheres neuróticas. Em Feiffer não encontra­mos sequer cenários. Os personagens, verdadeiros robôs em grandes solilóquios, contam seus infortúnios. É realmente uma "anti-história em quadrinhos".
- Após a polêmica gerada pelo livro “A Sedução do Inocente”, vários heróis tiveram de ser modificados. Dentre eles o Flash ganhou nova identidade, nova vestimenta e nova origem.
- Morre Alex Raymond, e John Prentice passa a desenhar Rip Kirby, "o detetive com óculos".
- 1957 - Mel Lazarus usa o mesmo ponto de partida de Schulz: crianças inteligentes como personagens centrais. Mas em sua história, Miss Peach, os adultos também encontram seus papéis. Na verdade os adultos (Miss Peach, a professora, e o Sr. Grimmis, o diretor da Escola Kelly) são ignorantes, estúpidos e de visão curta, em con­traste com o conhecimento superior e a vivacidade das crianças: Márcia, a garota agressiva, Francine, a coquete, Arthur, o desengon­çado, e Ira, o tímido.
- Leonard Starr cria “Mary Perkins on stage” (Glória), história de uma atriz, com roteiros originais e diálogos preciosos que lhe asseguram o lugar de uma das melhores HQ da época.
- 1958 - Johnny Hart lança B. C. (A. C., Antes de Cristo) com persona­gens pré-históricos que passam a maior parte de seu tempo em especulações sobre o progresso do mundo e o futuro das civilizações, servindo-se de seu binóculo pré-histórico e satirizando a sociedade contemporânea.
- 1959 - Albert Uderzo e René Goscinny criam “Vercingétorix”, que depois se torna “Astérix”. Trata-se de uma história gaulesa que pretende per­petuar a tradição francesa da história em quadrinhos históricos e defender seu folclore, com personagens característicos e uma boa coleção de piadas que inclui até os balões em hieróglifos. Um inqué­rito realizado na França demonstrou que dois franceses em cada três leram Astérix, o que diz de seu sucesso nesse país.
- Modificação efetuada no Lanterna Verde, que ganhou nova roupagem e perdeu quaisquer características místicas que possuíra anteriormente (ficção científica era mais bem visto que magia). Hal Jordan era um piloto de testes que encontra uma aeronave alienígena destruída e, recebe das mãos de um alien moribundo o anel da tropa dos Lanternas Verdes.
- 1960 - Super-Homem, Batman, Mulher Maravilha, Aquaman, Lanterna Verde e Ájax, O Caçador de Marte, formam a mais famosa equipe dos quadrinhos de super-heróis, a Liga da Justiça.
- Stan Lee, Jack Kirby e Steve Ditko iniciam um conjunto que faria história no mundo das HQ’s. Isso porque foram responsáveis, a partir de 1961, pela criação dos mais famosos heróis da Marvel Comics. A principal característica desses personagens era que a vida cotidiana fazia parte de suas páginas. Sendo assim, eles tinham problemas familiares, se apaixonavam, tinham que trabalhar, enfim, tudo pelo que passa uma pessoa normal. Dessa forma nasceram Quarteto Fantástico – Senhor Fantástico, Mulher Invisível, Coisa e Tocha Humana (Fantastic Four) – grupo de cientistas aventureiros que se precipitam numa viagem espacial e são surpreendidos por uma chuva de raios cósmicos, sendo bombardeados pelos mesmos, adquirindo poderes especiais; Hulk – (The Incredible Hulk) Dr. Robert Bruce Banner - um Dr. Jekill e Mr. Hyde da era atômica, criado após a explosão de um protótipo de bomba gama (sucessora quadrinística da bomba atômica); Homem-Aranha (Amazing Spider Man) Peter Parker - jovem estudante picado por uma aranha radiativa quando participava de excursão escolar em laboratório de pesquisas; Thor (Mighty Thor) Dr. Donald Blake – baseado na mitologia nórdica, onde Thor é o deus do trovão, filho de Odin, imperador dos deuses. Quando se viu ameaçado por jupterianos que planejavam invadir a Terra, o Dr. Don Blake se esconde em uma caverna onde encontra um antigo cajado que quando pressionado contra o chão o transforma no poderoso Thor.
- 1962 - Kurtzmann e Elder criam “Little Fanny” e lançam-na na revista Playboy. Esta história é uma mistura da personagem em quadrinhos, Aninha a pequena órfã, com o primeiro nome de Fanny HilI, antigo romance pornográfico. Little Annie Fanny é um misto de Marilyn Monroe e Brigitte Bardot. Com esta história inicia-se uma tendência erótica nas HQ que não falta nas histórias de aventuras, aparecendo de forma velada e implícita (os eternos noivos, com suas vestes justas, umas vezes rasgadas, presos seminus e submetidos a torturas). O erotismo se inicia agora, no entanto, de forma explícita e aberta.
- Jean Claude Forest cria “Barbarella”, na França. O êxito da série é explicado por ter sido a primeira HQ desenhada para adultos na França, além da beleza de traços dos desenhos. Com Barbarella, a mulher se torna objeto erótico porque ela é o erotismo encarnado em mulher.
- Quino (Joaquim Lavados) lança na Argentina “Mafalda”, perso­nagem que protesta continuamente contra a guerra, as injustiças sociais, meios de comunicação, a vida rotineira de sua mãe e até contra a “sopa”, que, apesar de detestar, é obrigada a tomar. Nota-se nitidamente em Quino a influência de Schultz e dos Peanuts. Mafalda vive com amigos, todos crianças, os problemas psicológicos de “adultos”. Contrariamente ao Peanuts, Mafalda possui, no entanto, uma consciência política bastante desenvolvida. (Masotta, 1970).
- 1963 – Sai da mente de Stan Lee e Jack Kirby, os primeiros X-Men. Primeiros heróis atingidos pelo preconceito racial. Mutantes de nascença, esse grupo promissor era formado por Ciclope, detentor de poderosa rajada ocular, Garota Marvel, telepata e telecinética, Homem de Gelo, capaz de criar e se transformar em gelo, Fera, homem corpulento e de capacidades acrobáticas superiores e Anjo, ser dotado de enormes asas emplumadas.
- 1964 - Na mesma linha dos B. C., surge nova história criada por Brant Parker (desenhista) e Johnny Hart, que se incumbe do texto: “The Wizard of I.D” (O mago de Id). Desta vez a Idade Média foi escolhida para contes­tar nossa sociedade. Trata-se da história de um rei baixote, pessi­mista e mau, que habita um castelo com súditos não menos maus, arrogantes e trapaceiros. Prestam-lhe serviços um mágico de capa­cidade duvidosa e um cavaleiro ardiloso e covarde, que, no entanto, apesar de suas mazelas e defeitos, são as únicas pessoas capazes de demonstrar humanidade. Em “The Wizard of I.D” nada vale a pena e nada se modifica.
- 1964 - É lançada na França a revista Chouchou, revelando novos de­senhistas franceses como Paul Gillon, com Náufragos do Tempo.
- 1965 - Peter O'Donnell e Jim Haldaway lançam na Inglaterra “Modesty Blaise”, série de aventuras.
- 1965 - É lançada na França a 1ª reedição luxuosa de Pieds Nickelés. - Surge na Itália a revista Unus.
- Nos EUA são publicadas Eerie e Creepy, revistas de terror de alto nível.
1966 - É lançada a revista francesa Phénix, com estudos sobre HQ. 1966/1967 - Guy Pellaert e Pierre Bartier criam, na França, jodelle (expressão em quadrinhos de Sylvie Vartan, segundo Marny) e Pravda (representação de Françoise Hardy, segundo o mesmo autor). (Marny, 1970). É o início da pop-art nos quadrinhos, com erotismo acentuado.
- 1967 - Guido Crépax desenha Neutron na revista Unus e depois Valentina, personagem erótica que conquista o público italiano e se difunde por vários países.
- 1968 - Nicolas Devil cria na França a Saga de Xam. Surgindo num misto de ficção científica e de erotismo, Saga coloca problemas ra­ciais, violência e não-violência. É uma extraterrena que vem à Terra a partir de outro planeta, em épocas diferentes, encarregada pela Grande Senhora do Planeta Xam, onde vive, de estabelecer na Terra uma proteção psíquica contra os invasores do seu planeta. Mas na Terra deixa-se seduzir e ganha os vícios dos homens. Quer assenho­rear-se do poder e tornar Xam um planeta forte e vigoroso, mas quer fazê-lo sem violência, pois na realidade Saga se apresenta como ; uma mensagem de paz e amor.
- 1969 - R. Crumb apresenta Zap Comix, quadrinhos underground e pornográficos. Percorrendo o passado da HQ, é relativamente fácil reconhecer que a HQ "não é uma série incoerente de desenhos mas a forma autêntica dos sonhos, das aspirações, das grandezas e miséria do nosso século". (Couperie, 1970).

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